Descripción de la Exposición
«A história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem». Abatendo-se com estrondo sobre a narrativa cinematográfica, o aforismo revolucionador de Jean-Luc Godard pode relacionar-se, por aproximação, com a interrogação dos modos de usar a ideia de tempo, e da ideia de tempo ela-mesma, que rasgou uma fissura epistemológica no véu positivista da história da humanidade, e, em reciprocidade, da história da arte.
Suspendendo o recorte cronológico do tempo em fragmentos estáticos de contornos estanques, a edificação linear do tempo segundo uma ordem discursiva de sentido unidireccional, instalados pelo zeitgeist que salvaguarda os códigos epocais de validação e significação, surgem, a destempo, anjos-maus da história, acontecimentos fora do tempo que vêm perturbar o ideal que inscreve, e encerra, cada objecto, cada imagem, na cegueira da luz intrínseca à sua contemporaneidade. Diz-nos Georges Didi-Huberman: estar diante de uma imagem é estar diante do tempo; é abrir o seu leque, activar a fecundidade dos diferenciais de tempos que estão emaranhados nas profundidades de cada imagem, já que esta só é pensável através da dialética do anacronismo, das descontinuidades e sobrevivências que não só transporta como projecta além ou aquém da sua temporalidade. Pensar a história e o tempo através da imagem, através da arte, é romper o véu que firma um demasiado-no-presente ou demasiado-no-passado, e lançar as possibilidades de recomposição, movimentos de aproximações ao antes, um mais-do-que-o-passado, e de recuos do actual, um mais-do- que-o-presente. É des-cronologizar [1].
Não nos interessam as aspirações indesejáveis das narrativas pós-modernas a um suposto equilíbrio letárgico no fim do tempo e da história, o cúmulo universalista que, totalitariamente e paradoxalmente, amalgama o pluralismo, absorve a margem e neutraliza o potencial de mudança do conflito entre antagonismos. Não nos interessam os excessos subversivos das acelerações modernistas, a ideia de tempo e história necessariamente e exclusivamente enquanto salto radical, que cancela as anterioridades e as suas próprias contemporaneidades. Interessa-nos, sobretudo, a fissura dialética da des-cronologização, interessa-nos o destempo da fricção, colisão, intersecção de temporalidades antagónicas e anacrónicas.
Importa o potencial de sobredeterminação temporal activado pelas obras de Miguel Ângelo Rocha, Rita Gaspar Vieira, Dalila Gonçalves, Catarina Mil-Homens, Edgar Massul e André Banha, e pelos intervalos, ressonâncias, tangências e distâncias que o corpo encontra no espaço. Nos trabalhos reunidos em [tempo] destempo encontra-se uma abordagem formal que, nos materiais, processos e composições e nas preocupações e indexantes individuais, próprios a cada artista, torna sensível um olhar crítico comum sobre o pensamento do tempo e do presente: uma policronia constelar no interior de cada obra, uma montagem de temporalidades heterogéneas. Ocupam o espaço procurando o desacordo do fluxo do corpo entre obstáculos e proximidades, uma fenomenologia do tempo que acontece no descoser da ordem cronológica entre princípio e fim – o porvir que emerge de um caminho às arrecuas, um loop às avessas, por que não?
«Não existe presente, apenas um devir» [2], o continuum de mudança perpétua que pode revolucionar os horizontes dos tempos. Este potencial de sobredeterminação procura perturbar a massa mole do presentismo esvaziado de legados pelo modernismo e de propósitos pelo pós-modernismo. O torpor do espectáculo, a apatia da incerteza, que confinam ao impasse de um aqui e agora que parece imóvel e eterno numa míriade de efemeridades Sísificas, e coloca o movimento entre um passado e um futuro e a experiência de um presente em crise, em conflito com a essência de algo vivo. Na verdade, estamos demasiado no presente. Perante este presentismo que nos amarra, importam as ausências e intermitências, as negatividades e invisibilidades nas noites dos tempos. [tempo] destempo está com o presente. Porém, não está no presente; é, antes, seu antagonismo, extemporaneidade discrónica do ser contemporâneo [3]. A sua contemporaneidade adere ao presente porque o estranha, porque persegue uma tensão. É sintoma de anacronismos num presente temperamental que tenta reconfigurações imagináveis do passado e do futuro. É necessário criar novas ficções, novas esperanças.
Notas:
[1] Estas ideias constam, de modo aprofundado, de Diante do tempo, história da arte e anacronismo das imagens, Georges Didi-Huberman (trad. Luís Lima), ed. Orfeu Negro (2017).
[2] Goethe citado em Apologia da história ou o ofício do historiador, Marc Bloch (trad. André Telles), ed. Jorge Zahar Editor Ltda (2002).
[3] Giorgio Agamben, «What is the contemporary?», em What is an apparatus?, and other essays, (trads.David Kishik e Stefan Pedatella), Stanford University Press (2009).
Ricardo Escarduça
Curador
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