Descripción de la Exposición
Repartir e consumir, por Clarissa Diniz
Os missionários
Vem do vocabulário corriqueiramente utilizado por Edu de Barros e Raoni Azevedo, ambos integrantes da organização estético-religiosa ANoiva – Igreja do Reino da Arte, o uso do termo "missão" para designar as empreitadas de Cropped (2020), Altar (2021), Capela (2022) e, agora, Repartição (2022).
A escolha do termo tem uma indubitável precisão. Se, para a missiologia tanto católica quanto protestante, missões envolvem chamados, territórios e objetivos, o mesmo se deu com esses projetos.
Realizados pela parceria de Raoni e Edu, as instalações surgiram a partir de convites e/ou oportunidades, se implicaram e responderam (do ponto de vista físico, histórico e simbólico) a espaços e institucionalidades específicas, assim como possuíram uma clara intenção: criar, em lugares de culto da arte, fricções com o repertório artístico das religiosidades.
Missionários, os artistas se inscrevem na tradição das iconografias religiosas, habitando o complexo território milenarmente compartilhado – bem como disputado – entre a arte e a sacralidade.
Com práticas distintas, é principalmente nesta convergência que Edu de Barros e Raoni Azevedo se encontram: colaboram entre si não apenas a partir de seus saberes técnicos específicos (a pintura, o design, a arquitetura), mas principalmente por meio de interesses, estudos e práticas que, nos (des)encontros entre arte e fé, têm cultivado coletivamente.
Este não é, todavia, um encontro beato.
A missão
Como fazem questão de salientar, Edu e Raoni fomentam uma missão irreverente: negam-se a reverenciar uma entidade ou narrativa únicas, fabricando, ao contrário, uma iconografia cuja sacralidade é heterogênea e anárquica.
Ao se esquivarem da adoração a uma única figura e sua consequente autoridade, em sua irreverente missão, os artistas também buscam se distanciar dos perigos do messianismo crônico que marca a história do Brasil, despertando projeções quase libidinais de poder que produzem fenômenos como o "imbrochável" genocida que, em nome de um messias, até há pouco ainda ocupava a presidência do país.
Como missionários não-messiânicos, os gestos de Raoni e Edu caminham na contramão da invalidação do presente que tanto identifica os messianismos que, para justificar a ênfase no futuro no qual virá o messias, comumente negam as responsabilidades históricas e políticas do aqui-e-agora.
Antagonicamente, os artistas não prometem salvadores por vir, mas propõem um imaginário imanente, contaminado por signos que transitam entre a sacralização e a profanação não de um passado ou de um futuro inalcançáveis, mas deste presente que nos impõe a condição de sermos seus cúmplices.
Assim, quando construíram Capela e Altar como arquiteturas efêmeras em drywall – desacatando, portanto, o projeto de permanência das sólidas igrejas e templos onde pululam afrescos que igualmente anseiam a posteridade –, os artistas cobriram suas paredes, tetos e sancas com a pujança iconográfica da pintura de Edu de Barros.
Nela, por entre pinceladas breves e linhas que propositadamente não diferenciam o que é estudo, esboço ou imagem final, coexistem deuses, motos, cadeiras, guaravitas, deusas, bujões de gás, tênis, macacos, corpos nus, garrafas, santos, máscaras, espetinhos de churrasco, bags do ifood, orixás, cenas de sexo, animais sagrados, marmitas, celulares, saltos, pombos, latas de cerveja, calcinhas.
Ao aproximar o que as convenções sociais e as liturgias religiosas costumam apartar, Capela e Altar ofertam um vislumbre da radical desordem do mundo que, por sua indisciplina, é potencialmente insurgente e transformadora. Os artistas disputam, em especial, o universo doutrinário do cristianismo, abrindo espaço, por entre seus dogmas e verdades, para o movimento, a incerteza, o questionamento e a crítica dos ícones e das narrativas que nos foram legados como incontestáveis.
Contudo, não é apenas porque os personagens vagam em meio ao "limbo" de uma paisagem indefinida e sem a clareza protestante de um "destino manifesto" que o gesto poético de Edu de Barros e Raoni Azevedo cultiva tempos e espaços dubitantes.
Como performa Repartição, é principalmente porque fratura a si própria que a obra surgida na colaboração entre ambos afirma sua missão profanatória, comprometida com o desmantelamento dos poderes opressores e fetichistas. Inclusive o de si mesma.
Desmembrar
Apesar de inspirarem uma excepcionalidade própria aos espaços eclesiásticos por conta de seu desenho arquitetônico – emulando altares, retábulos, abóbadas, etc –, as instalações de Edu de Barros e Raoni Azevedo nos parecem igualmente ordinárias não apenas porque prenhes de imagens cotidianas, como também por sua materialidade construtiva. Feitas de perfis metálicos e drywall, sua arquitetura não ostenta uma fisicalidade rara e preciosa, mas guarda familiaridade com nossas repartições públicas, lojas ou flats.
À medida em que os artistas foram aprofundando sua parceria, o avesso da face pictórica das instalações adquiriu protagonismo. Dessa forma, se inicialmente defrontados apenas com as figuras tão míticas quanto triviais da pintura de Edu de Barros, em Altar e, principalmente, com Capela, nos últimos anos passamos a nos relacionar também com as estruturas metálicas das obras – repletas de parafusos, cantoneiras e montantes.
Ao conferir centralidade ao que usualmente fica no backstage ou é considerado coadjuvante – portanto, invisibilizado –, os artistas dão a ver dois aspectos das instalações que, agora, no projeto Repartição, revelam toda a sua força: o fato de que a estruturação da obra foi elaborada artesanalmente (guardando paralelos com a própria fatura da pintura) e, mais adiante, o entendimento de que essa estrutura tem, além de função construtiva, também atribuições poéticas e políticas.
Com Repartição, ao ver o verso das faces pictóricas dessas instalações alcançar protagonismo, inferimos que Capela e Altar foram construídas já na intenção de seu próprio desmonte. Além de serem efêmeras, são arquiteturas pensadas para o desmembramento: produzem e acolhem sua desintegração porque são, efetivamente, contra a ilusão da permanência e da totalidade.
Profanar
Repartição incide, assim, em múltiplas profanações da hegemônica sacralidade judaico-cristã, "restituindo-a" – como define Giorgio Agamben acerca da dimensão política do que é profanar – “ao uso comum dos homens”[1].
Absolvidas da separação consagradora em relação ao mundano, as entidades representadas na pintura de Edu de Barros se ordinarizam junto a pneus de bicicleta e sandálias havaianas. Depois, como ocorreu com Altar e Capela, é o próprio lugar de santificação que vai ao espaço público da rua ou de uma casa, podendo ser visto, tocado e usado para além das liturgias e outras ritualizações baseadas na imposição da distância entre o sacro e o profano. Por fim, ele se desmancha, esquartejando as divindades e narrativas que deveriam sugerir como sendo celestiais e eternas.
Ao se despedaçarem, Capela e Altar também profanam a arte: afrontam sua intocável excepcionalidade com facas afiadas, serras, tesouras, martelos e pregos capazes de cortar e recombinar as instalativas pinturas. Contudo, além de retalhar, no rastro das fricções entre arte e religiosidade que tanto interessam a Edu e Raoni, Repartição consiste também em distribuir.
Distribuir
Repartição é da ordem da filantropia ou da caridade. Longe da benevolência, como pregadores da teologia da prosperidade, os artistas repartem para vender, fomentando o consumo da arte como parte de sua vocação à partilha público-privada.
Quase um século depois, assim efetivam a desconfiança do branco-modernista-antropófago-paulistano Oswald de Andrade, para o qual, como escreveu em março de 1929, Marx "errou quando colocou o problema econômico no chavão dos "meios de produção''. Para nós, o que é interessante é o consumo – a finalidade da produção. Simplesmente".
Autofágica na medida em que devora a si mesma, Repartição é antropófaga tal qual o capitalismo. Se, ecoando a doutrina bíblica da transubstanciação, a tradição eurocentrada da pintura recorrentemente representou a absorção do corpo de Cristo por meio de sua versão alegorizada em pão e vinho, como missionários profanos, Edu de Barros e Raoni Azevedo ousam comungar não o corpo Dele, mas, noutra direção, digerir a si mesmos.
Trata-se de um projeto ético de continuidade – calcado numa obra que se desdobra potencialmente ao infinito – e de um programa social de partilha que se dão, por sua vez, através de um projeto político-econômico de requalificação e consumo estéticos, transformando Capela e Altar na Repartição que só se concretiza quando na casa de quem houver se sentado à mesa deste banquete.
A missiva e a dádiva
Como se deu com Cropped, exposição em forma de retiro de quatro meses ocorrida na Sé Galeria (São Paulo, 2020) precisamente no início da pandemia do Covid-19, Repartição elege o corte como medida.
As distintas pinturas de Altar e Capela – a primeira, eminentemente mais gráfica, aplicada diretamente sobre o róseo fundo industrial do drywall e, a segunda, um dos raros momentos da obra de Edu de Barros nos quais ele enfrenta o fundo como paisagem ou ambientação dramatúrgica – se misturam quando partidas e rearranjadas.
Ao fazê-lo, dão continuidade aos cortes anteriormente realizados em Cropped, cujas paredes esverdeadas foram também recortadas e aquinhoadas por meio de sua venda, formando um corpo heterogêneo de fragmentos cuja totalidade está sendo programaticamente implodida por Raoni e Edu. Em algum momento já não será mais possível rastrear a origem das partes de sua obra, tampouco reconstituir a integralidade de sua memória.
Assim, como missionários não de um projeto civilizatório, mas de seu apocalipse, a missão dos artistas parece ser a de acelerar o desmanche em curso, apostando na desconstrução como projeto de sobrevivência.
Como evidência do não-messianismo de sua missão, sem o anseio pela chegada de um salvador ou qualquer expectativa de redenção, Edu de Barros e Raoni Azevedo se entregam por inteiro a essa hecatombe civilizacional, ofertando o corpo de sua própria obra em sacrifício.
Uma vez que reparti-la é a missiva, consumi-la torna-se, assim, a grande dádiva desta missão.
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[1] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2012.
Exposición. 31 oct de 2024 - 09 feb de 2025 / Artium - Centro Museo Vasco de Arte Contemporáneo / Vitoria-Gasteiz, Álava, España