Descripción de la Exposición
Um retrato não é um monumento. Podia ser, mas não é. Embora, um monumento possa servir-se de um retrato, e ao fazê-lo tornar o seu sujeito num emblema, numa figura idealizada, um veículo para uma ideologia. Porque um monumento unifica e institucionaliza o que deve manter-se discreto e individual, expõe o que não é possível apreender e o que precisa de ser protegido dentro de alguém: a sua frágil opacidade. Aquilo que Daniel Gustav Cramer intitula de Retratos são assemblages silenciosas, e não construções altas. São composições feitas de fragmentos de imagens e textos, materiais encontrados posicionados em volta do seu objecto. São índices reunidos que apontam a uma pessoa diferente de cada vez. Existem no equilíbrio delicado da sua presença física. Mesmo que achemos de imediato que têm uma certa grandeza, mesmo que as vidas descritas pareçam maiores que outras, os retratos de Cramer quase desaparecem nos espaços em que são apresentados.
Da história de Rodney Ansell—um homem cuja vida inspirou o filme Crocodile Dundee, uma história de extraordinária sobrevivência na selva australiana, antes de cair no uso de drogas, na paranoia e na violência—até ao enigmático souvenir dado por uma mulher misteriosa que o artista viu apenas uma vez num restaurante no Japão, as personagens no trabalho de Cramer são entidades humanas cujos caminhos se cruzaram com o do artista a vários níveis de espaço e tempo. Por vezes são anónimos. São humanos. Se as suas vidas ressoam com as nossas, se aprendemos alguma coisa com eles, é pela maneira como assombram o nosso presente a partir das sombras de um passado mais ou menos recente. Se algumas personagens “grandes” aparecem na narrativa do artista, é a partir da periferia das suas biografias, e por meio da inscrição do seu corpo latente no tempo e na memória. Estes retratos não são o oposto exato de monumental. A sua monumentalidade serve de forma subtil para formar uma galeria de rostos que de outra forma talvez nunca veríamos. É como se os tivéssemos perdido na multidão quotidiana da história, embora sejam precisamente estes os necessários para compreender o nosso próprio destino.
Fazer um retrato é um ato de admiração, um ato de amor. É uma forma de criar uma ligação. É uma prova. Quando decidimos fazer o retrato de alguém, tanto o retratado como quem retrata torna-se parte de um círculo. Juntam-se a uma constelação de rostos, corpos e atitudes. Cada um dos retratos de Daniel Gustav Cramer abre um portão ao invisível, criando ligações com indivíduos ausentes que o artista conheceu, mesmo que apenas por um momento—num abrir e fechar de olhos, numa epifania—ou ao longo de várias semanas ou meses. Os retratos de Cramer estabelecem ligações com outros indivíduos que não estão presentes, aqueles que habitam um reino diferente: atores, escritores e figuras históricas.
O retrato é um portal, um modo de partilha entre este e outro lugar, entre o que chamaríamos de agora e um sítio diferente do outro lado do tempo. Estabelece-se uma ligação a tempos antigos, quando os retratos (talvez os primeiros?) eram funerários, uma maneira de oferecer aos mortos uma presença entre os vivos. Cramer trabalha na interseção do retrato como memorial com o retrato como memória. A sua prática só se pode estruturar através da intimidade, compondo uma viagem que nos oferece uma experiência de estranha proximidade com corpos tão diferentes, tão distantes dos nossos. Ao mesmo tempo, estes estranhos parecem de repente olhar na mesma direção temporal, dirigindo-se a nós através de uma mensagem escrita num plano imaginário. Um pescador à beira-rio em Veneza e um músico de rua que se tornou amigo (era ele real ou imaginário?) partilham um palco com a escritora Agatha Christie, que afirmou nunca ter querido que o seu retrato fosse revelado ao mundo.
De forma radical, um retrato revela as negociações que acontecem entre quem produz a representação e quem se rende ao seu aparato. Este diálogo é tão político que também gera um espaço de negociação com o espetador. Quando abri o Instagram hoje de manhã cedo, a primeira cara que vi não era necessariamente a cara que mais queria ver. Pelo contrário, era a cara de uma pessoa que conhecia vagamente, que o algoritmo sugeriu que eu visualizasse. Nos retratos de Cramer, as caras não aparecem como no continuum das redes sociais contemporâneas. Formam-se na nossa mente através da aura que permanece na fotografia, nos fantasmas da nossa cultura. Nos seus retratos, somos convidados a aproximarmo-nos e prestar atenção, para tentar decifrar as vozes que lá estão e não estão. Como o lago que Claude Monet talvez não tivesse chegado a ver por causa das cataratas que tornavam os seus olhos cada vez mais opacos, escurecendo a sua visão. Ou como o perfume preferido de Charlie Chaplin, que ele usava sempre de maneira a assombrar os lugares onde ia depois de os deixar, em vez da sua própria imagem.
Um retrato é sempre, também, um retrato de outra pessoa. Quando olho para um retrato pintado, estou de frente para uma imagem da pessoa que é retratada, assim como a de quem a pintou. Estou também a olhar para mim próprio, a ver-me reflectido nesta imagem já multiplicada e em camadas. Se escrevesse um retrato de ti, talvez não quisesse descrever a infinita riqueza das linhas que correm sobre a tipografia do teu rosto, que observei durante infinitas horas, sentindo de cada vez como se estivesse a explorar a superfície desconhecida de um longínquo corpo celeste. Porque fazer o teu retrato—como qualquer tentativa de retratar algo vivo, acho eu—é impossível. Retratar o que está em mudança é uma tarefa impossível, embora necessária. Manter um registo dos movimentos e efeitos, dos afectos produzidos, por aquilo que está vivo.
Talvez terá sido por isso que Cramer decidiu fazer um retrato de Daniel Helber—um homem que, depois de um acontecimento que mudou a sua vida durante uma viagem de bicicleta no Canadá, começou um processo que uns anos mais tarde o tornou numa das figuras mais importantes de uma prática única: colecionar areia. Helber, que tem uma amostra de areia de todos os países do mundo, contou uma vez como a sua obsessão o tinha levado a uma conclusão fatídica, à qual a maior parte dos colecionadores de areia que abandonam o seu trabalho de Sísifo chegam: colecionar areia é uma tarefa infinita. Como a composição das praias muda constantemente—ao longo do tempo, mas também mesmo de um lado da sua localização para o outro—a geologia da areia existe em plena transformação, as ondas estão sempre a recompor as margens, a cada minuto. Como um retrato. Daniel Gustav Cramer representa Helber através de uma lista de todas as localizações de onde ele retirou amostras, arquivada numa série de livros cheios de listas factuais. Uma celebração pequena e modesta de um projeto para sempre inacabado, que liga todas as margens da Terra. Um monumento impossível. Um retrato de areia.
Yann Chateigné Tytelman
Exposición. 30 sep de 2021 - 20 nov de 2021 / Galeria Vera Cortês / Lisboa, Portugal
Exposición. 19 nov de 2024 - 02 mar de 2025 / Museo Nacional del Prado / Madrid, España
Formación. 23 nov de 2024 - 29 nov de 2024 / Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS) / Madrid, España