Descripción de la Exposición
I
Em 1948, Ad Reinhardt (1913-1967), um dos mais importantes pintores expressionistas abstrato, disse, em uma entrevista, que era mais difícil escrever sobre arte abstrata do que qualquer outra porque o seu sentido não está no assunto, mas sim na atividade de pintar. Curiosamente é a geração dele – os grandes mestres do abstracionismo nos anos 1940-50 – que parecia ter encerrado o sentido da prática da pintura. Sua morte foi decretada nas décadas seguintes pelo monocromo minimalista, pela crítica institucional e a desconstrução das grandes narrativas, que minaram a história da arte progressiva guiada por uma necessidade interna da disciplina e levada adiante por figuras heróicas. Entretanto foi também o espírito de revisão que orientou o seu ressurgimento a partir da década de 1980, com tendências como o neoexpressionismo, neo-geo, pós-pop, que se apropriavam do legado do estilo histórico, a tradição mesma da pintura, e punha em movimento a possibilidade da sua prática dentro de uma noção expandida. Menos uma disciplina e mais um conceito versátil, um campo para especulação da linguagem e da cultura para diferentes estratégias formais como fotografia, filme, instalação e até pintura mesmo. Como pontuou um dos críticos mais originais das últimas décadas, David Hickey (1938-2021), “a pintura não está morta exceto como uma arte maior. De agora em diante ela será um discurso de crentes, como o jazz.” (The invisible dragon, 1993).
II
As referências plásticas de Luciana Maas são claras: neoexpressionismo e bad painting de uma maneira ampla, mas com predileções muito precisas por de Kokoschka, Polke, Rauschenberg ou Kirpenberger entre outros. Na atraente e extensa série Tênis (2013-17), motivo repetido em toda ela, a pintura se desenvolve como um exercício de estilos e modos de fazer. Com formatos generosos e horizontais em sua maioria, ela mostra as habilidades da artista como pintora, como ela transita entre suas referências, submetendo-as às tensões de suas composições entre linhas verticais e horizontais, à certo automatismo na pintura, aos golpes do pincel, que fustigam ou empastam a tela. Mas a inteligente beleza e conforto destas obras é quebrado por duas pinturas maiores, produzidas posteriormente encerrando a série (ambas Gansa verde 1 e Gansa verde 2, 2017-2021), onde um pé – este signo tão estimado pelo modernismo brasileiro – verde ácido e de unhas vermelhas gritantes entra como que arrebentando aquele mundo silencioso, para inserir algo estridente, disruptivo, pop: o grafitti como um curto-circuito no cérebro, abrindo para um mundo ainda não representado, sem exterioridade, desconhecido na prática da artista.
Produzidas entre 2017-2022, as pinturas recentes de Luciana Maas são feitas como um mergulho no espaço da tela, quase sempre em grandes formatos, e com uma energia incessante. São o resultado de sucessivas camadas de tinta trabalhadas com as mãos, pincéis e, eventualmente, spray. A artista parece ter uma relação visceral com a matéria, inebriada pelo potencial infinito da imagem em expressar experiências subjetivas e internalizadas. Não há nada programático no seu processo de trabalho ou na concepção da pintura, que transita entre abstrata e figurativa, sem tomar um lado, e nem seu conteúdo é equacionado pela presença ou ausência de um imaginário reconhecível de citações.
As pinturas são muita tinta, as cores são pura emoção, e as formas uma figuração dilacerada, por vezes estranhamente sensual: vultos, sombras, corpos mutilados, próteses, animais, que flutuam, fundem-se com planos elaborados, abstratos, quase paisagens ou interiores. Maas não está necessariamente contando uma história com seus trabalhos ainda que ao acaso elas possam evocar cenas ou personagens da área da Cracolândia, em São Paulo, onde teve um ateliê por alguns anos. Ao contrário, ela as compõe de modo a sugerir uma coreografia de formas e figuras que se juntam de um modo altamente construído, pictórico, denso. Mais do que qualquer coisa ela quer imprimir a natureza expressiva dos trabalhos sobre o observador, sem nenhuma necessidade de adivinhação para além da imagem de cada pintura. Têm como tema o encontro visual com o inesperado no movimento mesmo de pintar, quando a artista captura a metamorfose do plano em pintura. Cada obra tem a sua singularidade e demanda um longo processo para lograr seu estado final: algo que pareça não estar terminado. Em movimento, sempre.
Neste último conjunto de trabalhos pode-se ver a assinatura de um estilo figurativo de extração abstrata evocando visões, fantasmas, paisagens, sonhos talvez, abertos à percepção de cada sujeito. Ainda que produzidos simultaneamente, eles podem ser divididos em três grandes grupos. Primeiro os ‘retratos’, considerando as proporções do formato quase sempre similar aos dos retratos tradicionais desta arte, a composição com figuras solitárias, como que surgidas do interior das telas, cercadas por manchas e quase formas como atributos do retratado. Entre sublime e grotesco, tudo sem grande precisão como em Ficou tarde, 2017 e Lagartixa, 2019, ambos com uma desleixada imponência renascentista; Anzol, 2020, um instantâneo baconiano. Por sua vez, Garra, 2020, sugere algo narrativo, com uma imagem mais nítida de um interior de quarto, uma mulher verde com uma mancha vermelha no ventre, mesmo tom que lhe colore as mãos e respinga pelo espaço em direção a um berço ao fundo. Frida Kahlo? Uma metáfora? Talvez, mas antes uma boa pintura.
O segundo grupo são as ‘encenações’, construções mais complexas, detalhadas, transpirando aspereza e espontaneidade. Assumidamente teatrais, as pinturas se revelam como acontecimentos grandiosos, com uma paleta variada e vibrante, composições elaboradas, quase um still cinematográfico: Sob cordões, 2019, Palafitas 2018-22, Tomadas, 2020 e Corrente de luz, 2022, entre outros. Ou então aparecem como registros de um teatro de fantoches, em planos marcados por linhas verticais, com tons mais rebaixados e algo melancólico: Sob fios, Sob raízes e Régua nunca foi paralela, todos 2020. Como em quase toda pintura de Maas, a figuração constitui-se a partir das camadas sobre camadas de matéria acumulada e removida, das fendas que se abrem entre elas, das incisões de linhas escuras além daquelas que se auto desenham nos limites das cores, revelando deste modo uma dinâmica tensa no espaço entre forma e matéria.
E no terceiro grupo estão os ‘abstratos’. É precisamente com eles que Maas reafirma o espírito selvagem da sua pintura, com estruturas na eminência do colapso, construídas no gesto apaixonado da sobreposição de tintas, sem escorridos, e na determinação de um sentido vago entre o primeiro plano e o fundo. Ademais, sempre algo extremadas, as pinturas podem conter uma infinidade de acontecimentos plástico em uma espécie de colagem como em Bisonte, 2018, e Lagartixa, 2020, assim como apresentarem em um colorido entre sujo e estridente composições estranhamente decorativas como Arraia, 2018, A forma, 2019, Célula, 2019 e Alarido, 2020. Elas e todas as outras obras podem evocar múltiplas referências, mas antes elas afirmam uma arte imediata e vital, comprometida com a pintura como um território onde ainda se colocam questões, conflitos e incertezas.
Ivo Mesquita
Abril, 2022
Exposición. 31 oct de 2024 - 09 feb de 2025 / Artium - Centro Museo Vasco de Arte Contemporáneo / Vitoria-Gasteiz, Álava, España