Descripción de la Exposición
O Parlamento de Caríbdis
RICARDO JACINTO
Everything changes and nothing stands still.
Everything flows and nothing abides.
Everything gives way and nothing stays fixed.
Everything flows; nothing remains.
All is flux, nothing is stationary.
All is flux, nothing stays still.
All flows, nothing stays.
Estas são algumas das variações da premissa basilar do fluxo Heraclitiano que introduz a consciência de que a natureza está em constante movimento e que, portanto, nunca se pode pisar a mesma água duas vezes (1). Esta ideia pode ser tomada como o mote lapidar para a exposição de Ricardo Jacinto onde, como já é motif comum no seu trabalho, um acontecimento se desdobra em camadas e momentos possivelmente infinitos. A singularidade de cada segundo, bem como a contínua dispersão desconstrutiva do espaço e do tempo, funcionam assim como alimentos de fruição coletiva para este organismo plural e multifacetado. Introduzindo um microcosmos poético e cenografado, o artista posiciona o espetador perante um limbo formal que divaga assumidamente entre a protoarquitetura, a escultura, o som e o desenho, numa instalação onde a precariedade, transitoriedade e performatividade ativa, se reunem num dispositivo omnipresente.
Existe um desenho central – que funciona como ponto de centrifugação, mas voltaremos a essa questão mais tarde – que dita a dispersão dos restantes objetos que o rodeiam e que, neste sentido, se posiciona enquanto foco da rede de relações coexistentes. Circunscrito e opacificado com o pigmento de óxido de ferro aparentemente imaterial, este fundo circular nasce da forma de uma eira e das ruínas dos poços em seu torno, perto do atelier de RJ e do coletivo OSSO, em São Gregório, e que servira outrora enquanto espaço de trabalho agrícola – e, portanto, de experiência comunitária. A observação mapeada da retícula e patine deste situ enquanto processo ritualístico para a sugestão de um palco/lugar utópico, é aqui incutida pela abstração pura no desdobramento do seu corpo e da sua presença, tanto física como invisível, culminando na dissensão imersiva de uma paisagem sónica e de uma câmara de ecos – à qual, da mesma forma, retomaremos.
Regressando à centrifugação declarada, a mesma existe enquanto metáfora potenciadora da disposição dos restantes objetos no espaço, bem como da sua ativação pela parte do espetador. Vejamos: seis grandes aros encontrados no local são resignificados na galeria, posicionados num plano superior ao do desenho negro e que, simultaneamente à sua forma escultórica dispersiva, funcionam como objetos radiantes de seis mini-transmissores FM estéreo, sem sinal de input, enquanto antenas em sintonia com a frequência análoga (104.3 MHz), emitindo interferências íntimas ao seu remanso. Ora, homóloga à metáfora do poço enquanto profundidade negra construída para emergir água, é-nos sugerida, no título da instalação, Caríbdis, ninfa mitológica que atormentava os marinheiros na travessia do Estreito de Messina – fronteira marítima no mar Mediterrânico –, nomeadamente Odisseu (ou Ulisses, dependendo da preferência literária), cujos ecos de confronto e tentativa de diálogo podemos perscrutar na radioscape envolvente à escultura. Este tormento não é singelo de co-significação, antes nos posiciona num parlamento ativo onde uma ação democrática se reflete sobre um tumulto fenomenológico de uma violentíssima centrifugação no mar, resultando num turbilhão simbólico de reflexos e sons, [235] ... divine Charybdis terribly sucked down the salt water of the sea. Verily whenever she belched it forth, like a cauldron on a great fire she would seethe and bubble in utter turmoil, and high over head the spray would fall on the tops of both the cliffs, [240] ...while beneath the earth appeared black with sand. So we looked toward her and feared destruction (2).
De facto, estamos a tratar de fenómenos que conflituam entre o diálogo e a destruição, seja pelos corpos cujo silêncio se suspende através do mergulho nas suas interferências e deambulações externas, seja através do terceiro momento da exposição – que se desdobra em quarto, e que se projeta em dois planos diferentes, o do chão e o das paredes – com o gesso e o pó de ferro. Acuindo à destruição iminente existe, simultânea à composição central, a sugestão de uma peça de gesso fendida em treze fragmentos cujo contorno externo, não só provém da forma prima de um dos círculos de ferro como, internamente e após a sua destruição, se mapeia individualmente nas paredes. Quer isto dizer que cada um dos treze destroços se encontra desenhado a pigmento de óxido de ferro nas paredes laterais e frontais do espaço, projetando a memória da sua própria destruição, bem como intuindo a sua nova resignificação e existência.
Encontramos, assim, instaurado um lugar cénico, nebuloso, destituído de tempo e de espaço; um parlamento sensível, paradoxal no seu significado. Existe uma narrativa de ressonâncias infinitas movidas à deriva do espetador, cada som – cada eco íntimo – é resultado do caminhar no espaço sónico, visível e manifestado através das formas mas que se encontra para lá do objeto e que, apesar do seu silêncio aparente, está envolto numa tempestade eletromagnética. Existe também uma dimensão tectónica, uma construção intuitiva e natural da exposição, que se multiplica em cada olhar e que se deduz a cada pensamento, permitindo ao espetador que ele próprio tenha o poder e possibilidade de juntar as peças do puzzle – reconfigurando e pluralizando cada signo visível no espaço. É aluída a sensibilidade de uma narrativa espacial e sonora que varia conforma a perceção da profundidade e do plano, do vazio e da vertigem, de onde se entra e de onde se sai – concomitantemente, é testado o confronto entre a relação abstrata e formal à distância e a variação sensível à aproximação e imersão – semelhante a um labirinto cujas partes infindavelmente se desdobram noutras (3). Uma certeza de infinito é palpável, ainda que esta não seja concreta, é vivida enquanto experiência irrepetível e difusa, eterna e expandida muito para além do espaço expositivo – relativamente à autonomia da arena de difusão da emissão radiofónica. A experiência cognitiva é libertada do constrangimento da condição espaciotemporal, e os objetos libertados da sua condição protoestética.
A fronteira é abolida e a água passará entre todos uma vez – tudo flui, panta rhei (4).
Eva Mendes
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(1) Platão, Plato’s Cratylus. Cambridge studies in the Dialogues of Plato, 2003. 402a.
(2) Homero, The Odyssey, Traduzida por Robert Fagles. Penguin Classics, 2003. [235-240]; (…a divina Caríbdis / sugava de modo terrível a água salgada do mar. / E quando a vomitava, fervilhava toda remexida, / como um caldeirão por cima de um grande fogo; / e alta caía a espuma sobre os picos de ambos os rochedos. / ... e a terra se tornava visível, azul devido à areia. Deles se apoderou o pálido terror.; Homero, A Odisseia, Traduzida por Frederico Lourenço. Quetzal Editores, 2019. [235-240].)
(3) No sentido estabelecido por Gilles Deleuze (The Fold Leibniz and the Baroque, Traduzido por Tom Conley. University of Minnesota Press, 1993. p.3).
(4) Tudo flui. Pensamento pré-socrático atribuído a Heráclito (Plato, Plato’s Cratylus. Cambridge studies in the Dialogues of Plato, 2003).
Exposición. 17 nov de 2024 - 18 ene de 2025 / The Ryder - Madrid / Madrid, España
Formación. 23 nov de 2024 - 29 nov de 2024 / Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS) / Madrid, España