Descripción de la Exposición
Lua Cão repõe em Lisboa a exposição homónima que Alexandre Estrela e João Maria Gusmão + Pedro Paiva apresentaram, com curadoria de Natxo Checa, na edição de 2016 do festival açoriano Walk and Talk. Ocupando todo o espaço de uma serração desactivada no Bairro Alto, esta exposição propõe um cruzamento de trabalhos produzidos sobretudo nas áreas do vídeo (Alexandre Estrela) e do filme (JMG+PP). Estas obras, distribuídas pelos amplos vãos daquele espaço, não só partilham dispositivos e suportes de projecção, como formam constelações de peças activadas em momentos distintos da visita. Na sua morfologia, Lua Cão afigura-se como um cinema lateral e performativo que, radicado na mecânica da visão, desafia os habituais protocolos perceptivos e fenomenológicos para instituir a experiência distendida e absolutamente imersiva de um panoscópio.
À primeira vista, nada sugeriria uma ligação entre os universos de Alexandre Estrela e João Maria Gusmão + Pedro Paiva. Se o primeiro desenvolve a sua produção a partir de um metassistema conceptual e estrutural, pautado por uma aturada reflexão em torno dos fenómenos estéticos e perceptivos, os segundos sustentam a sua pesquisa no quadro fenomenológico de uma proto-ciência, especulativa e poética. Do encontro destes dois universos não despontam, portanto, narrativas lineares; antes sincronias simpáticas e casuais que conduzem a atenção do espectador para os espaços de esvaziamento, para as instâncias de materialização e objectualização da imagem, para o alinhamento das peças, para os intervalos gerados nas sequências.
As colaborações esporádicas destes artistas com a Galeria Zé dos Bois estendem-se por mais de década e meia, tendo vindo a concretizar-se em múltiplos eventos artísticos, dentro e fora de portas. Uma parte significativa das obras agora apresentadas foi realizada no âmbito das excursões artísticas que estes autores realizaram com Natxo Checa, em geografias longínquas, a propósito de exposições suas na ZDB.
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A partir de 2006, para escapar ao tédio lisboeta, desafiei o João e o Pedro, com quem já tinha trabalhado na Zdb, para excursões artísticas noutros lados do mundo. Era do estilo, dinheiro no bolso que angariávamos a rapar concursos públicos e que cambiávamos em dólares, equipamento no porão do avião e, durante cinco anos, procurámos os lugares mais inusitados para a criação artística... Angola, Brasil, Argentina, Marrocos, Chile...
Em Atacama sempre que entrávamos num edifício público havia uma cova reconstruída com uma múmia na posição fetal, uns vasos de cerâmica, uns panos, e nós parvos, horas a olhar para aquilo. Depois à noite no deserto ficávamos especados a ver as montanhas contra o céu estrelado. As luzes noturnas cintilantes furavam os olhos. Era como se não houvesse no mundo um lugar onde as estrelas estivessem tão próximas, como se o céu pudesse cair sobre
as nossas cabeças. Imaginávamos a noite ancestral com vinho tinto, a noite primeva das Américas quando ainda se enterravam os mortos nas montanhas, as múmias que o burocrata moderno expõe nos museus para os turistas contemporâneos. Ver mesmo de perto a proximidade de um infinitamente longe. E na vitrine... a múmia exumada com a cabeça em forma de melão alongada na direcção das estrelas; o cadáver no buraco, vasos e panos, um vidro por cima e uns diagramas didácticos onde se explicava como os ameríndios procediam para lentamente alterarem a forma encefálica. O João e o Pedro gostavam daquilo e diziam palavras “bonitas”: macrocefalia, eflúvio magnético, abissologia e fantasma, eu acreditava que eles viam merdas nas coisas que eu não via, mas sempre desconfiado das palavras achava que a cópula celeste nos Andes devia ser boa como o milho.
Quando fui com o Alexandre para a Lagoa das Sete Cidades, imaginei que podia trabalhar com ele da mesma maneira, mas a sua resistência a viajar e a sujar as botas entalou-nos numa cabana de madeira húmida no centro da cratera açoriana.
Lá fora, no frio, uma nuvem selava o vulcão enquanto em desespero afiávamos uma criptoméria contra a lareira. A paisagem que nos vendiam como impoluta era agora um lago no Quénia, uma lixeira química de fertilizantes; e a escarpa verde que descia até a lagoa azul, uma encosta japonesa de um latifundiário agro-pecuário. Tudo ecoava outras paragens.
À meia noite, aproveitando a coragem de um charro, fugimos por um túnel que perfurava a parede da cratera em direcção ao mar. Percorremos mudos os infindáveis 1200 metros de teias de aranha. Qualquer estímulo era exageradamente interpretado. No silêncio invadiram-nos luzes entópticas cortadas por um ladrar satânico de um cão de fila, barulhos estridentes que descobrimos mais tarde virem da folga de uma válvula de esgoto nos tubos que percorriam a gruta Homo faber. A meio caminho a parca luz de um Nokia da idade da pedra revelou-nos dois cubos isométricos e uma vulva geométrica cozidos no morno da rocha.
Foi no negro da rocha basáltica que a primeira
ideia surgiu ao Alexandre, a Viagem ao Meio, um trabalho estrutural que cruza o filme como matéria e a imagem vídeo como representação... Voltámos então à gruta com um rolo de 600 metros de película debaixo do braço, e, do centro, desenrolámos a fita virgem no chão no meio da lama, até à boca do túnel, como testemunho da progressiva entrada de luz natural numa câmara escura, no negro do centro
do vulcão. Depois o Estrela filmou o corredor com uma câmara digital, avançando pé ante pé até à saída que dava ao mar, pelo caminho dentro focando o ponto de luz oscilante na outra extremidade. Mais tarde na Zdb recriámos a experiência e projectaram-se as duas imagens em simultâneo, sobrepostas, num cinema longitudinal, uma bancada alta
de dois degraus, e uma viagem feita a dois, aos dois meios, o digital e o analógico, do princípio ao fim um luzeiro.
Mas não ficámos por aqui. Depois da nossa experiência na Atlântida, e já com o artista animado, convenci-o a viajar pelo mundo fora, chegámos a Timor timor, a leste do Leste como lhe chamam os locais, e convidados por aristocratas em fato de treino, testemunhámos a exumação do guardador da montanha seis meses depois do seu enterro católico. No Mundo Perdido, participámos incrédulos em novos rituais funerários... foi porreiro, havia Sumol de laranja e comemos búfalo com batata frita.
De volta a Lisboa, o João e o Pedro mostraram-me um filme invulgar quase documental que fizeram em São Tomé e a que chamaram Papagaio. Perguntei-lhes porquê? e eles vieram-me de novo com aquelas palavras esquisitas, ventriloquismo. Era um ritual de transe em que o espírito dos mortos entrava nos corpos “sobrenaturalizados”, a banda tocava música, invocavam uns santos africanos e almas penadas desciam involuntariamente a quem se desse a essa força hipnótica. Os artistas filmavam, depois passavam a câmara aos monstros e o filme era um, e outro: ao mesmo tempo um filme realizado por eles e um filme de zombies, como num teatro de mortos-vivos, uma luz ao fundo do túnel a meio de qualquer coisa.
Natxo Checa
Actualidad, 17 may de 2017
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