Descripción de la Exposición
O artista, um arqueólogo do futuro
por Victor Gorgulho
Certa noite, após um estrondo desavisado, acordou atônito em meio a um sonho fragmentado, despedaçado em cacos pelo chão sujo de seu ateliê. Limpou seus olhos — em busca de ver o mundo como se o mirasse pela primeira vez, novamente, quem sabe — e mirou o ambiente ao seu redor. Incrédulo, fitou brevemente o estrago que o forno de cerâmica havia feito em seu estúdio. Não era o apocalipse per se, tampouco se tratava de uma tragédia anunciada. Havia fogo e barro, argila em brasa, pedaços robustos de cerâmica espalhados por todo o chão, como que estendido feito um tapete vermelho a encaminhá-lo para um novo mundo.
Inerte, perfeitamente impávido, esboçou primeiros e curtos passos em direção ao fundo da sala, de onde parecia vislumbrar um brilho trôpego, em delicados feixes de luz a perfurar à distância suas retinas cansadas. Questionou-se, claro, sobre a natureza daquela cena e cenário surreais — não estava mesmo ainda a dormir, imerso nas profundezas de seu sono?
Aproximou-se cautelosamente, até deparar-se com elas, suas próprias criaturas. Tão longe, tão perto: figuras familiares e ao mesmo passo tão autônomas entre si. Filhas intactas de um acidental big bang caseiro, modeladas por suas próprias mãos (disso não havia esquecido, estava certo), reluzindo agora em disparada constante. Uma pedra de quartzo em meio a uma das cerâmicas. Estava ali, tudo estava ali, não restavam mais dúvidas. Sonho ou realidade não eram mais polos distintos a disputarem a veracidade do que estava a presenciar. Ajoelhou diante de suas crias, o desejo quase incontrolável de tocar suas peles e ranhuras a lhe tomar. Era como a paisagem primeira, um jardim do éden bem ali em seu local de trabalho e morada. Brilho eterno de lembranças ofuscadas.
Um alarme soa em disparada, causando-lhe uma tórrida decepção. Estava, agora sim, a acordar para a realidade fria, em nada próxima das altas temperaturas do forno de queima de suas peças de cerâmica. Desilusão e deboche, febre e furor. O que havia acabado de acontecer?Curvou-se bruscamente, buscando o lado da cama onde os sonhos e pesadelos lhe deixassem em paz. Voltou a dormir em sono profundo, ainda que perturbado pelas imagens que há pouco haviam tomado sua visão.
Quando o sol se levantou, enfim, seu corpo em conjunto ergueu-se ofegante, pronto para mais um dia de labor. Limpou os olhos, mais uma vez, repetidamente. Ao longe, um lampejo conhecido voltou a lhe fitar. Lá elas estavam, intactas, em seus diferentes tamanhos e formatos, embebidas da peculiar beleza que apenas o fogo é capaz de esculpir. Abriu um sorriso tímido e respirou em alívio. Suas criaturas ali seguiam, estrelas banhadas pelos holofotes de um imenso palco teatral: a própria vida, real e concreta.
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Intitulada Livro de Quartzo, em referência à obra homônima realizada pelo artista no ano passado, a presente mostra nos convida a ver de perto (por vezes, bem de perto, não se acanhem) a mais recente produção de Rodrigo Torres. Livro de Quartzorevela ao público um artista em estado convulsivo e catártico de criação. Nos últimos anos, Torres empenhou-se em expandir as múltiplas possibilidades de sua já longeva prática em cerâmica, experimentando diferentes processos de queima, modulação e pigmentação das peças aqui reunidas.
Historicamente, a cerâmica remonta a intensos processos de trocas culturais, afetivas e monetárias. A feitura de vasos, azulejos e afins já era praticada desde os anos 9.000 A.C., aproximadamente. Ainda assim, até hoje, o suporte é, de certo modo, preterido no campo da arte pela tradição da tinta à óleo. Ora, vejam a ultrapassada hipocrisia: a massa pictórica que se perpetuou como o material mais prestigiado na prática da pintura mundo afora não viria a ser concebida pelos irmãos Van Eyck antes do século XV, muito após a cerâmica já circular pelo globo, empregada na fatura de murais, casas e ornamentos das mais diversas sortes. Se a contemporaneidade – e, portanto, a produção artística realizada nela – já pôs em xeque, há muito, tal diferenciação estrita e limitante acerca das possibilidades do fazer artístico, por que ainda hoje estaria a cerâmica a ser arrogantemente esnobada e não avalizada como matéria própria da arte, como sempre o foi? Tolas contradições, sabemos…
Foi na década de 1940, por exemplo, ainda jovem, que o artista pernambucano Francisco Brennand deixou a fábrica de cerâmica de sua família, onde trabalhava, para aventurar-se em incursões artísticas pela Europa, buscando aproximar-se da produção de nomes já emblemáticos à época, como Pablo Picasso, Joan Miró e Antoni Gaudí. Qual não foi a surpresa de Brennand ao testemunhar, a olho nu, obras destes e de outros de seus ídolos sendo realizadas em... err… cerâmica? De volta ao Brasil, não tardou muito a iniciar sua imensa e fértil produção de esculturas, totens, murais e mais. Convencido, portanto, de que a cerâmica não era inferior a outros suportes, acaba por tornar-se uma figura incontornável na história da arte brasileira por sua obra e por seu peculiar modelo de produção, realizado quase em escala industrial, em sua fazenda misto de ateliê e fábrica, nos arredores do Recife.
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Se o virtuosismo de Rodrigo Torres já havia sido provado há muito em outras ocasiões, Livro de Quartzo nos permite ver uma expansão não apenas técnica, mas também conceitual do corpo da obra do artista. Suspensas por um aparato de metal, as duas obras que ocupam a sala traseira do sobrado d'A Gentil Carioca, por exemplo, convidam o público a experienciar suas insuspeitadas potencialidades sonoras, musicais. Na sala da frente, além dos delicados vasos expostos em prateleiras que tensionam a dimensão “decorativa” das cerâmicas, o artista exibe esculturas que evocam a forma de galhos de árvores – estruturas verticais de aço moduladas e queimadas também no forno cerâmico.
Processo guiado majoritariamente pelo acaso e por surpresas de toda ordem, a queima das obras no forno situado no ateliê-casa do artista, no Rio de Janeiro, é responsável por entregar de volta ao seu criador produtos finais absolutamente inesperados. Fora do controle absoluto do artista, o fogo é capaz de provocar rachaduras, craquelados, seções derretidas e outros tantos efeitos que escapam ao domínio de Torres. É justamente aí, no entanto, que reside o vapor barato do laborioso processo. Uma vez entregue às chamas, os diferentes minerais naturais que – vejam só – haviam acabado de ser banhados em água e secos pelo ar, saem do forno de queima como surpreendentes e incontroláveis seres. À revelia do desejo de seu criador, ganham o mundo em opulência e autonomia únicas. Ou, em um cenário menos otimista e um tanto frequente, despedaçam-se diante do mesmo, em uma espécie de roleta-russa entre a vida e a morte breve: a erguerem-se ou a ruírem-se, sem opções no meio termo.
Uma vez modeladas, retorcidas e esculpidas, as engenhosas esculturas ganham tons diversos de pigmentações dos mais diversos tons e matizes, também possíveis através de materiais naturais, de diferentes origens. De volta ao forno, tornam-se criaturas ainda mais fantásticas, elaboradas, teatrais. Envoltas pelas chamas, ecoam o processo que acontece, muito antes, nas profundezas da própria Terra – onde a fusão dos minerais é capaz, por exemplo, de desencadear longos processos de sedimentação que resultam, ao fim, em rochas. Pedras ornamentais, prontas para exibirem-se no espetáculo infindo da natureza, ou ladeadas pelas paredes do cubo branco expositivo. O cenário, em si, não é um problema. Apresentam-se sempre, e inevitavelmente, como doces seres naturais, capazes de evocar criaturas ana- ou zoomórficas. Bocas a nos devorar lentamente.
Sem que percebamos, estamos de volta à terra, ao chão, ao início de tudo. Afinal, o que é o planeta senão um vasto sítio arqueológico de inúmeras belezas sedimentadas sobre tantas outras? Como criaturas que irão resistir à inevitável devastação humana, as esculturas de Rodrigo Torres parecem presunçosamente nos dizer, baixinho e em tom de deboche: o dia de vocês chegará; já nós… aqui permaneceremos.
O artista - e nós - acordamos definitivamente do sonho-pesadelo que nos acometeu há pouco. Calmamente percorremos nossos olhos pelo exuberante corpo escultórico aqui exibido, perfeitamente estático, sempre no mesmo exato lugar. Uma a uma, e juntas em um desconcertantemente belo coletivo de seres enigmáticos, parecem não temer a nada nem ninguém. São feitas de fogo, água, ar e terra, como nós. Mas, diferente delas, em muito pouco sucumbiremos, desapareceremos em massa, expulsos do território que tanto teimamos em explorar. Elas não.
Exposición. 19 nov de 2024 - 02 mar de 2025 / Museo Nacional del Prado / Madrid, España
Formación. 23 nov de 2024 - 29 nov de 2024 / Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS) / Madrid, España