Descripción de la Exposición
EM TOM DE AZUL
por Diógenes Moura
Ah clareiras, ah mundo
ah coisas do acontecido
no oculto fundo.
Surjo, injurjo-me,
À teia da bruma espuma:
Sei que cresço
– respondeço
em azul de noturno mar.
Lucio Cardoso
Nunca esqueci uma fotografia de Pierre Verger feita em Salvador, na década de 1950. Ali, um personagem sem sexo fuma encostado na porta da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Ao seu lado uma criança quase sorri porque viu o fotógrafo no instante preciso “enxergar” por trás da câmera aquela figura com uma máscara de careta, um vestido quase mortalha, a perna esquerda aparecendo na fenda da roupa e um mistério que vai cruzar a linha do tempo numa fotografia: homem ou mulher, ou os dois, ou mais adiante? Quem estaria embaixo da máscara de careta, na porta de uma igreja precisamente num período em que no carnaval de Salvador os caretas com suas mortalhas faziam a festa com a leveza da voz fina para não serem identificados. Careta, quem sou eu? Careta, quem é você? Com o passar dos anos as mortalhas foram desaparecendo. Deram lugar aos enfadonhos abadás sintéticos num carnaval onde o varejo faz com que todos sigam iguais dentro dos blocos de trios elétricos. As máscaras dos caretas se diluíram aparecendo atualmente na cidade em pequenos grupos, em busca de resquícios de um passado-presente porque necessitamos dos dois.
A família Farkas tem raízes quase ancestrais com a Bahia. Thomaz Farkas, o pai, sempre me disse que gostaria de ser baiano. João Farkas, o filho, hoje tem ao lado da família uma morada na praia de Busca Vida e recordações desde a década de 1960, quando eram hóspedes dos Amado, na casa da Rua Alagoinhas, no Rio Vermelho. João me escreveu contando que foi nas barracas do mercado que aprendeu “com a mão espalmada de Mestre Didi que Deus é um só, embora os caminhos até Ele sejam muitos” e que ouvia “o Hino do Bahia e do Nosso Senhor do Bonfim na voz de Caetano Veloso de cabelos raspados, naqueles anos em que a barra era pesada e o homem pisava na lua”. Também me disse que foram os vizinhos que o levaram a Maragojipe “onde o povo resiste e o carnaval não quer morrer”. Esse carnaval que vai além da dor. Que vai além do calor. Que vai além do desejo. Que vai além da pobreza. Que vaza por todos os limites de um Brasil à beira entre violência e paixão.
Então ele, João, também transbordou com tudo o que viu e ouviu e tudo fotografou nos dois primeiros anos de sua saga maragojipana. Só quando voltou pela terceira vez é que se fixou nos retratos e no silêncio, na fantasia dos outros, na máscara dos caretas anônimos, das costureiras anônimas, das vozes anônimas, dos homens, das mulheres, das crianças, dos velhos, dos brancos e dos pretos. Do homem-mulher e da mulher-macho. De tudo isso e de um retrato diante de uma parede azul. De um retrato do “outro” que não sabemos quem é, mas que somos “nós mesmos”. De um retrato brasileiro renascido dos entrudos, das matrizes africana e indígenas, das tribos Maragós (aqueles dos braços invencíveis) que por ali viveram no início de tudo.
E mesmo com o rosto encoberto um retrato será sempre um veredito. Está acima de uma identidade não revelada. É como um livro aberto. É um segredo de um segredo. A Série Azul é um segredo que o fotógrafo tenta descobrir procurando “enxergar” a si mesmo ali, do outro lado da câmera. Como naquela fotografia de Verger. Como no poema de Lúcio Cardoso. É um segredo que nos pertence. Que tem reflexos de nós mesmos explodindo em cores até agora, futuristas. Estamos dentro de cada um desses mascarados. Guardados e expostos. Em azul de noturno mar. Diante do fotógrafo e de nós mesmos, como quem pergunta: quem é você? O que seu retrato quer de mim? É disso que se trata.
Exposición. 09 feb de 2017 - 11 mar de 2017 / Galeria Marcelo Guarnieri - Rio de Janeiro [ESPACIO CERRADO] / Rio de Janeiro, Brasil
Exposición. 12 nov de 2024 - 09 feb de 2025 / Museo Nacional Thyssen-Bornemisza / Madrid, España