Descripción de la Exposición
Habito à Avenida Ipiranga número 1138, cidade de São Paulo.
Prédio antigo-decadente, datado de 1917, possivelmente um Ramos de Azevedo.
À esquerda, a movimentada rua Santa Efigênia, seus potentes sound systems, cabos de toda espécie, dvds, programas Windows Office.
Original ou pirata? O cliente é quem manda.
Diariamente caminho em direção á Avenida Rio Branco. Em poucos metros cruzo então a celebrada esquina da Ipiranga com a Avenida São João.
Uma sala expositiva na Praça da Sé, ao lado do Pátio do Colégio.
Era esse o espaço a ser ocupado por esta exposição.
Para aqueles que não frequentam a região, o cenário é o seguinte: pela manhã o simpático local recebe turistas e crianças no sítio histórico onde a cidade foi fundada, a primeira missa, o Padre Anchieta.
Ao entardecer há uma inversão na paisagem. Talvez a mais violenta que já pude presenciar: é noite, e centenas de pessoas dormem enroladas em cobertores cinzas.
Durante o dia os cobertores são guardados em bueiros.
A prefeitura construiu recentemente um canteiro embaixo do telhadinho colonial para que os moradores de rua perdessem a proteção da chuva. De nada adiantou.
Desde minha mudança para o centro da cidade, as percepções que tenho sobre sociedade, cidade e alteridade, viraram do avesso.
Se a classe mais privilegiada, moradora desta mesma cidade, vive em estado de alienação, aqui faz-se impossível ignorar.
Nosso espírito anímico-blasé se vê atravessado por um mal-estar, uma crise ética-moral.
Construímos, nos termos do capitalismo, cidades que são bombas sociológicas, pela incrível desigualdade e segregação.
As cidades estão entregues ao caos, aos interesses privados.
As condições de vida da maioria pioram a cada dia.
Ao cruzar a citada esquina recordo-me da imortalizada canção de Caetano Veloso, escrita em 1978, motivada pelo impacto que São Paulo lhe causou: “Alguma coisa acontece no meu coração”.
É, portanto, essa “coisa” que acontece, esse estado de atravessamento, o ponto de partida desta exposição.
Descomprometida de qualquer justificativa teórica, a seleção de trabalhos se deu mediante o exercício de observação desse percurso. A leitura de textos de figuras legitimamente engajadas e comprometidas me ajudou na jornada, embora, ouse dizer, não haja intelectualidade possível para dar conta da gravidade do atual estado das coisas.
Assim, num gesto de humildade, rendi o intelecto ao coração, aumentei o volume de “Sampa”, e deixei-me vagar pelas duras poesias concretas de suas esquinas, observando o povo oprimido, a força da grana que ergue e destrói coisas belas.
Havia um espaço a ser ocupado.
O vislumbre inicial foi a parede (a ser pintada de preto) com três trabalhos em vídeo: “Sem título”, de Gustavo Ferro, retrata um entre milhares desses personagens do centro; um homem, com mãos mecânicas, discursa sobre a vida, trabalho, amizades. Não se vê seu rosto. “O batedor de bolsas”, de Dalton Paula, mostra o próprio artista, de olhos vendados, fazendo o que o título da obra sugere, e “Ano Branco”, de Luiz Roque, apresenta a musa Glamour Garcia, personagem trans-robô, em ficção futurista. Essas figuras, protagonistas dos vídeos, representavam, na minha construção imaginativa-poética, uma micro sociedade marginal. Surgiu, então, o nome desta mostra, “Avesso do avesso do avesso do avesso”, presente na música de Caetano Veloso e também referência direta ao poeta concretista Décio Pignatari e a sua luta pelo avesso. É o avesso humano-social o foco do meu interesse. Aquela parede, aqueles três trabalhos, representariam então uma síntese de minha pequena PanAmérica.
Está tudo ali: o escancarado preconceito contra os negros, as questões de gênero e raça, a degradação humana, a poesia, as amizades, os encontros, as feridas, as lutas, as diferenças.
Não há mestiçagem mais potente do que aquela que se vê na Praça da Sé. Porque não se trata de uma questão de raça.
É densa mistura complexa: sanidade e lucidez, Deus e diabo, bêbados, poetas, sábios, semi-deuses, bandidos, prostitutas, sangue, trabalhadores, fé e morte.
“Trague poesia” são cigarros de Deco Adijman. Neles o artista escreveu à mão os nomes de grandes poetas. É dor tragada pela poesia.
Talvez a única possiblidade de salvação?
A poesia.
A parede oposta aos três vídeos apresenta a série “Não civilizada”, de Pedro Victor Brandão. O artista reconstrói paisagens cariocas "originais" digitalmente.
Veem-se apenas as belas paisagens cariocas simulando clássicas fotografias em preto e branco. Toda construção humana apagada pelo artista
. Só resta a paisagem.
Só quando cruzo a Ipiranga. É talvez a pergunta que não cala. Para onde nos levou o modo humano (demasiadamente humano) da maneira como construímos nossa civilização ocidental?
Na mesma parede, uma bola de papel amassada (envernizada, ela mascara sua fragilidade) de Raquel Uendi. No papel amassado a palavra Deus escrita de diversas maneiras, página extraída da Cabala. Deus não poderia faltar.
Há outra bola na parede lateral. Solta.
Uma placa de vidro encostada na parede com a frase cortada: “Inverter a lógica no negócio”.
Traplev é um artista que sabe ser crítico com o uso das palavras, de sua autoria ou apropriadas, é a linguagem sua grande manifestação.
Está tudo dito.
“É que Narciso acha feio o que não é espelho”. O mito do jovem e belo Narciso que se apaixonou por sua própria imagem no espelho.
Sua maior incapacidade era amar o outro. Na psicanálise a personalidade narcísica apresenta vazios existenciais, um certo ar blasé de superioridade, padrão de grandeza, sensação de importância, requerendo constante atenção.
O que pouco se conta desse personagem é que, segundo Ovídio, Narciso foi fruto de um estupro, daí advém seu desvio de personalidade.
Parece ser de uma série de estupros contra a alteridade que o Brasil se foi desenhando.
Os dois trabalhos em xerox, datados de 1980, de Hudinilson Jr são chamados de “Narcisse Exercício de Me Ver”. Não conheci artista que tenha conseguido ironizar de maneira tão cortante a sociedade hipócrita-burguesa brasileira como ele.
Hudinilson Jr foi um herói contra a caretice.
A seu lado, Rafael Rg reencena, em 2015, a ação de xerox de Hudinilson Jr. Cópia e contra-cópia. Desdobramentos de avessos res-significando gestos poéticos.
“Sou possuído pelo outro; o olhar do outro modela meu corpo em sua nudez, causa seu nascer, o esculpe, o produz como é, o vê como jamais o verei. O outro detém um segredo: o segredo do que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e esta possessão nada mais é que a consciência de meu possuir. E eu, no reconhecimento de minha objetividade, tenho a experiência de que ele detém esta consciência. A título de consciência, o outro é para mim aquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo, aquele que faz com que ‘haja’ um ser, que é o meu”.
No hall de entrada da sala expositiva, quatro fotografias do coletivo 3Nós3 (Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França). “Ensacamento”.
Motivados pela energia juvenil, pela luta contra a censura e a ditadura, o subversivo trio foi responsável por uma série de ações artísticas históricas, como essa, de ensacar a cabeça dos monumentos da cidade.
É uma honra tê-los presentes neste diálogo.
Daniel Fagundes mostra sua tela paisagem em fala íntima. “Para ver: 12 trabalhos ‒ devolver a terra à Terra. Para ouvir: a idade da Terra”. Os sacos de terra devolvidos à Terra num gesto devoto.
“O Brasil não é o meu país: é o meu abismo. O terreiro de minhas, nossas contradições”, diz o lúcido poema de Jomard Muniz de Britto que abre esta mostra.
“Escãndalos por toda parte” ‒ mais uma fotografia de Traplev.
Pois não há nada de discreto na condição da política brasileira. A corrupção corre solta, impune. Voa em avião particular.
Só o “Discurso Político” de Daniel Santiago para representar essa situação: é roubo, roubo, roubo, roubo...
Caetano canta que quando chegou por aqui nada entendeu...
Não há entendimento possível, não há como colocar em funcionamento nossa mente analítica sem experimentar diretamente, por meio dos sentidos. São peças negras de um quebra-cabeças sem lógica nem resposta. Como no trabalho de Fernanda Chieco.
No encarar o outro frente a frente não se enxerga rosto algum.
“O Brasil é o país do Futuro” é a fotografia de capa de livro de Jurandy Valença. Somos, enfim, brasileiros.
Um povo que aprende depressa a chamar a vida de realidade.
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso.
Maria Montero
3NÓS3
Dalton Paula
Daniel Fagundes
Daniel Santiago
Deco Adjiman
Fernanda Chieco
Gustavo Ferro
Hudinilson Jr.
Jurandy Valença
Luiz Roque
Pedro Victor Brandão
Rafael RG
Raquel Uendi
Traplev
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