Descripción de la Exposición
Corte estranho, impressão abjeta: itinerário
A concha eloquente do coração. As placas de compensado entintadas de negro poderiam servir de matriz e gerar imagens no papel, mas não foi esse o destino delas. Negada a potência matricial, são estéreis quanto a estampas, férteis quanto às ideias e associações que desencadeiam. O conjunto que abre a exposição alude a fragmentos de histórias, narrativas truncadas, módulos de tempo, cacos de memórias. Passeiam por ali figuras anônimas e objetos deslocados – algumas mariposas, um casarão destelhado, um barco que soçobra. Trevas / Trevas / Treva a mais negra sobre homens tristes, canta Jards Macalé em uma das faixas do álbum Besta Fera, lançado no início deste ano*. O andarilho descalço vaga há muito tempo, sem chegar a lugar nenhum. Estranhas ou familiares, as figuras refugiam-se no escuro seco. Nunca amanhece.
Noroeste. Talvez amanheça? A riqueza do colorido enche os olhos: verdes, azuis, vermelho, amarelo esverdeado, rosa. As fachadas dos casarões do Valongo, centro velho de Santos, suas ruínas. O portão de ferro continua em pé, porém já não guarda coisa alguma, somente pés de mamona e trepadeiras vorazes. A estátua de um Buda visto num museu, um vulto qualquer, uma memória sem forma definida, um sonho quase lembrado. Olhar para o familiar como se nunca o tivéssemos visto. A placa de compensado gravada é a foz de imagens das mais diversas origens, trazidas para perto do ateliê-porto, lugar de encontro dos pontos cardeais.
Marte. Se as coisas piorarem muito por aqui, podemos fugir para Marte? À beira da beira da beira da janela / Na beira do caos, à beira do mundo / À beira do poço sem fundo. No título, o deus romano da guerra, ou o planeta cor de sangue, estrela vermelha no céu. Na imagem, trajetórias emaranhadas, um busto anônimo, uma árvore desfolhada no delírio de linhas, morte e germinação. Cinzas azulados, verdes pálidos e branco atravessam a planície preta do papel, como rios secos aguardando a próxima chuva. Um sol negro emite raios em linha reta. Em que mundo estamos? Sol rumo ao sono / Sombras sobre o oceano / Cidades cobertas de névoa espessa / Jamais devassada / Por brilho de sol.
Sete cachorros gregos. Vem da antiga mitologia grega a estória do jovem Actéon. Ele percorria as montanhas do reino de seu pai, caçando cervos com amigos. Enquanto isso, no vale, Diana, a deusa caçadora, banhava-se dentro de uma gruta, rodeada por ninfas. Actéon separa-se dos amigos, vaga sem rumo definido. O destino o conduz à gruta e ele, sem querer, surpreende a deusa despida. Como castigo pela ofensa a seu pudor, Diana transforma Actéon num cervo. Ele corre desesperado pelos bosques. Os cães de caça avistam o cervo e o perseguem. Sete cachorros gregos: Nape, Teron, Lelaps, Melampus, Panfagu, Dorceu e Tigre. Eles matam o próprio dono transformado em animal, enquanto os amigos de Actéon chamam seu nome, procurando-o pelo bosque para mostrar-lhe a presa conquistada. Só então é aplacada a ira de Diana. A série Sete cachorros gregos nasce da combinatória de sete matrizes de xilogravura, impressas em sobreposição. Cada estampa traz uma combinação singular de todas as matrizes.
O cu do mundo. Trabalho inédito, concluído há pouco e mostrado pela primeira vez nesta exposição. Mesmo título de uma canção de Caetano Veloso, gravada no início dos anos noventa, mas poderia ser de hoje. O bode envolto em vermelho passeia à vontade, indiferente à melancolia azul da figura que molha os pés. Torso, mão ou luva, espaços de cor e rasgos no papel. Poderia ser somente a placa de compensado na parede, entintada, como A concha eloquente, corte estranho. Mas o artista escolhe outro caminho, busca uma impressão que quer ir além dela própria, carregar o papel de tinta, pintura gravada (impressão abjeta?). Combinado entre papel e madeira. As camadas de cores, as camadas de figuras, espalham-se pelo espaço e submergem nele.
Pantaneiras. As quatro gravuras da série, impressas recentemente a partir de matrizes perdidas, são resultado da residência artística realizada em julho de 2018 às margens do Rio Paraguai, no Pantanal sul mato-grossense. A mistura de memória, observação e invenção percorre e une cada uma das estampas coloridas. Experiência afetuosa que aproxima descrição e abstração. O artista transporta à madeira e depois ao papel traços do lugar – bichos, plantas, paisagens, cores. Não um pântano, mas um Pantanal, berço de muita vida. Vida que se faz no afundar e voltar à tona. Chegamos ao limite da água mais funda / Levanto o olhar pro céu.
Priscila Sacchettin
* Todos os versos em itálico citados ao longo do texto vêm de Besta Fera.
Exposición. 31 oct de 2024 - 09 feb de 2025 / Artium - Centro Museo Vasco de Arte Contemporáneo / Vitoria-Gasteiz, Álava, España