Descripción de la Exposición
Almandrade hoje:
O enigma do traço e da forma, da letra e da palavra
A arte contemporânea brasileira foi em parte consolidada por alguns caminhos auspiciosos que lograram um lugar político e estético especial para a nossa produção cultural: a resistência de uma poesia visual que transitou também para a canção popular e a obra plástica, a consolidação de uma tradição construtiva e concreta em meados do século XX e a experiência de uma arquitetura moderna de vanguarda que lançou ao mundo um olhar sobre patrimônio material, construção e urbanização.
A vasta, leve e precisa produção artística e literária de Almandrade (São Felipe, BA, 1953) é fruto desse amálgama de caminhos. Por isso, não nos cabe o ímpeto de classificá-lo. Entretanto, é saudável encontrar algumas âncoras históricas, geopolíticas e estéticas que ajudaram a construir uma vizinhança poética para a sua atuação. Por um lado, podemos associá-lo aos nomes proeminentes de nossa arte neoconcreta e conceitual e de nossa poesia concreta e visual; por outro, há também sentidos alargados e vizinhanças com nomes que vieram de outras partes do Brasil, fora do protagonismo do eixo Rio–São Paulo. Se puxarmos o fio da meada, enxergamos aproximações possíveis com a obra de notáveis, como: o cearense Sérvulo Esmeraldo; os pernambucanos Montez Magno, Daniel Santiago e Paulo Bruscky; o paraibano Raul Córdula; e mesmo os cariocas Wlademir Dias-Pino, Neide Sá e Álvaro de Sá; além dos paulistas Ridyas e Regina Silveira.
De modo geral, essas aproximações acontecem por uma identificação das geometrias e poemas visuais que nascem de uma prática experimental realizada sobre o plano do papel ou da tela. Por conseguinte, há também a progressão espacial da prática artística para a tridimensionalidade em que corte e dobra, forma e cor atuam e ativam o campo semântico da escultura. Nesse caminho para o espaço construído, em suas mais variadas escalas, não há como não o associar ao neoconcretismo carioca, do final dos anos 1950, ou mesmo à Escola Brasil, que floresceu em São Paulo nos anos 1970. A aproximação a esse repertório poético da história da arte e da poesia no país risca e demarca um lugar simbólico ao Almandrade, muito além do contexto vanguardista de Salvador (BA).
Em sobrevoo, é possível identificar um momento essencial da cultura brasileira no qual o artista deu os seus primeiros passos: os anos de chumbo (1968-1974) da ditadura civil-militar brasileira. Foi nesse período de sombra que sua arte silenciosa foi gestada, oferecendo, não sem humor, analogias possíveis à vida política e afetiva. Entretanto, a obra de Almandrade, em toda sua inteireza, não deve ser percebida como consequente apenas de um tempo cronológico, por um encadeamento linear de uma produção que vai superando a anterior e, assim, subsequentemente. Em seus já 50 anos de trajetória, há, sim, uma linha conceitual e plástica coerente que conduz sua produção cotidiana: uma experimentação permanente em que triangulam as formas do traço, da letra e da matéria.
Na exposição, por exemplo, o arco temporal das obras selecionadas, de 1973 a 2021, nos deixa ver uma persistência de pensamento e uma clareza formal, o que nos permite transitar pelo tempo dessa arte de maneira mais solta, desatrelado à correspondência do que o meio glorifica de tempos em tempos. Isso, talvez, tenha relação com a razão metafísica das obras do artista, em que seus signos assumem novas pertinências, à medida em que os objetos e telas são observados e percebidos por quem os ativa, trazendo sua arte para a conjugação do presente.
Uma chave de leitura que me parece pertinente está na proximidade com a linguagem conceitual e gráfica da arquitetura, uma espécie de existência desveladora de espaços. Trata-se de uma tradução que eu gostaria de chamar de “quase-arquitetura”: um fazer poético que parece tangenciar as razões da própria arquitetura como teoria e práxis, um quase existir arquitetônico. Tal percepção é dada ao observarmos os recursos gráficos de representação, as composições e, por consequência, as sugestões espaciais que são ali traçadas.
Muitos dos desenhos e pinturas emulam uma vista de topo, um voo rasante sobre uma área imaginada. São como plantas arquitetônicas que compõem uma estrutura – algo que é, em um só tempo, espaço representado e poema escrito. A dança compositiva das letras na formulação de palavras e o arranjo gráfico de riscos em nanquim ou acrílica promovem esse lugar simbólico exclusivo da obra de arte. São lugares capazes de abordar situações dialógicas que advêm da arquitetura representada: o dentro e o fora, o privado e o público, a luz e a sombra, o fechado e o aberto, etc.
Entre os conceitos que a fortuna crítica nos logrou acerca da obra do artista baiano, é a ideia de “nudismo abstrato” – dada pelo escritor e artista Décio Pignatari – que parece caber como uma luva. Se a obra é poema ou objeto, se é escultura ou arquitetura, não sabemos. Todavia, como indicou o crítico, percebemos a existência de trabalhos compostos “segundo uma grafia de cartilha, porém enganosamente sig-nificada e simplista, posto que metafísica”.
Assim, por intermédio das obras arranjadas no espaço da galeria, está qualificado o enigma poético e arquitetônico de Almandrade, que nos concede em suas múltiplas composições a existência de “meteoritos geométricos do pensamento”[1].
Diego Matos, entre janeiro e fevereiro de 2023.
[1] As citações nos dois últimos parágrafos provêm do ensaio de Décio Pignatari (1927-2012), intitulado “A persistência do nudismo abstrato: os objetos franciscanamente contundentes de Almandrade” (2006).
Exposición. 19 nov de 2024 - 02 mar de 2025 / Museo Nacional del Prado / Madrid, España
Formación. 23 nov de 2024 - 29 nov de 2024 / Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS) / Madrid, España