Descripción de la Exposición
Até Setembro, por este andar, estarei completamente soterrado em resmas de papel. Estas palavras, com que José Loureiro me acolheu no seu atelier em finais de 2017, marcavam, evidentemente para mim, o início do meu trabalho para a exposição A Vocação dos Ácaros, a ser apresentada na Fundação Carmona e Costa no ano seguinte.
Pensei que estivesse a exagerar mas, numa segunda visita, uns meses mais tarde, constatei com os meus olhos que o prenúncio do artista não estava errado.
Nessa altura, conversámos sobre as ideias subjacentes ao seu mais recente trabalho em papel, o labor do ácaro e a sua vocação, num fluxo criativo que logo, enquanto o ouvia falar, me fez pensar nas fadigas de Hércules mas também oferecia uma visão do progresso e da loquacidade do desenho, que conquistava, no caso de Loureiro, lugar a um esforço cego.
Às primeiras reflexões, ainda pouco maduras, seguiram-se outras. Mas sobretudo surgiram perguntas. O que estava a querer dizer o artista? Porquê este título para uma série de trabalhos aparentemente abstractos e que pouco ou nada tinham a ver com estes parasitas assim como os conhecemos? Ou será que queria comparar o seu trabalho prolífico com os ritmos reprodutivos desta espécie? Ou quereria talvez Loureiro tentar identificar o inidentificável parasita de diminuta dimensão?
Fechei os olhos na tentativa de relacionar cores, formas e composições nos intervalos em que o artista arrumava as resmas de papel para dar espaço a outras. Folha após folha, Loureiro dava-me a conhecer a sua galeria de ácaros, como se estivésemos a visitar as salas irregulares e os longos corredores da Galleria degli Uffizi, em Florença.
Numa espécie de educação para a beleza e para a vida, o artista contava anedotas curiosas, sugeria acoplamentos de imagens e analogias fisionómicas, lembrava filiações com pintores do passado, reflectia sobre os caracteres estéticos que o estimulavam a ter uma educação visual em permanência.
Em plena consonância com quanto foi elaborado na arte italiana a partir de 1300, a vocação dos ácaros de Loureiro articula-se em alguns nós especulativos que contemplam a volumetria e a voluptuosidade das cores, a carga dramática das figuras representadas, a composição e, ainda, a dissolução do campo dos acontecimentos aberto a todas as possíveis determinações. O artista concentra-se num terreno de pesquisa iconológica e exegética que fala sobre a pintura e a sua história. Formas, motivos e composições que sintetizam preciosidades do bizantino e do gótico tardio com novidades do renascimento: o idealismo transcendente e místico de Beato Angélico e o realismo imanente de Masaccio.
Loureiro repete, refina, ultrapassa as margens, abunda. Apresenta um esncaixe sem fim de elementos-guia onde se fundem pensamento, enunciado, ressonâncias rítmicas, metáforas, similitudes, corpos proto-mecânicos. Seduz com a realeza dos ocres, a nobreza transcendente dos azuis e a intensidade do verde e do vermelho. Finalmente, trabalha ao redor da figura do ácaro.
Ácaros estes que irrompem do papel, elegantes e luminoso, numa tensão sem catarse nem solução. Eles são fictio mental, máscara, caverna misteriosa dos instintos, desdobramento de personalidade. Mas são também langor de espasmos e plenitude erótica, encontros amorosos, vaga-lumes, bólides, extraordinária e fecunda maturidade de linguagem e de ideação fantástica, soluções expressivas singulares levadas a cabo pelo artista.
Vistos do alto, os ácaros parecem tanto guerreiros no campo de batalha como feirantes em festas campestres. Ao observar com atenção os trabalhos, retêm-se fragmentos: o estupor e a postura extática, lutadores nus e cintilantes que se aproximam prontos para se baterem, o prenúncio de uma acção sanguinária ou, ainda, coreografias de danças ou a pausa entre um baile e outro.
Porém, chega um momento em que qualquer tipo de interpertação e explicação se torna infrutífera, quando o trabalho de Loureiro se aclara ao ser posto ao lado de um seu outro trabalho, permitindo que uma súbita e inexplicável emoção, por este suscitada, tenha em conta o tempo que o viu nascer.
Seis meses após o nosso primeiro encontro, José Loureiro enviou-me uma selecção de cerca de 360 trabalhos. As imagens vinham acompanhadas de duas linhas escritas nas quais era manifesta, mais uma vez, a messa a nudo de intenções e ideias, agora com minúcia de detalhes.
A elegância das linhas, a limpidez cromática a conciliar o gosto bizantino com o gótico cortês e ecos de pintura nórdica, a reelaboração do estilo de grandes mestres numa linguagem mais cursiva. Os ácaros assumem o aspecto de tramas de cor com as quais Loureiro compõe acordos e dissonâncias que repete com variantes sobre uma ordem não-predeterminada, construída graças a uma pesquisa contínua de equilíbrio formal.
Os seus trabalhos são de um lirismo lucidamente analítico e desprovido de resquícios sentimentais. São a evolução de teceduras cromáticas fluentes, feitas de cores vivas, nas quais o artista parece empenhado em tornar visível o último estádio de dissolução do heroíco e do vitorioso.
Loureiro conjuga e associa ácaros num estado de transição entre humano, mineral, vegetal e animal. Espalha detalhes significativos sobre princípios de constelações simbólicas e alegóricas. Ordena-os difusamente. Finalmente, consegue-se colher a ambientação espacial criada pela luminosidade das cores a óleo, pelo ductus subtil e nervoso do artista, pictoricamente informadíssimo. Uma atitude que José Loureiro devota à autonomia linguística e à substância expressiva do trabalho.
Mas a última palavra é sempre do artista: no seu entender, os ácaros são como o baixo contínuo da música barroca e as sinapses-mortas (desenhos abstractos) funcionam como instrumentos solistas."
Antónia Gaeta
Exposición. 31 oct de 2024 - 09 feb de 2025 / Artium - Centro Museo Vasco de Arte Contemporáneo / Vitoria-Gasteiz, Álava, España